Marcia Poppe, em Abril de 2021
Para que seja possível discorrer sobre a relação entre Inteligência Emocional (EQ) e Inteligência Espiritual (SQ), é necessário esclarecer como compreendo e faço uso destes conceitos. Muitos autores me servem de referência e fundamentam minha prática em Desenvolvimento Humano, entretanto, trago apenas os ligados ao escopo deste artigo, e exploro com mais profundidade a SQ por ser o construto mais recente, para depois explicitar minha perspectiva a respeito da conexão entre SQ e EQ.
Enxergo inteligências como linhas distintas de desenvolvimento (Wilber, 2000) e acredito fortemente na SQ como uma inteligência integradora (Wigglesworth, 2012), capaz de expandir nossas capacidades nas múltiplas inteligências que possuímos (Gardner, 1983). Nós nos desenvolvemos em cada linha de modo independente e interconectado, sendo que a inteligência espiritual “quando altamente desenvolvida, também se torna fonte de orientação e direcionamento para as outras dimensões do nosso potencial humano” (Wigglesworth, 2012).
Mas afinal, o que é SQ? Trata-se mesmo de uma inteligência? É diferente de Espiritualidade? E Religião, onde entra neste contexto?
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Desde o final dos anos 90, diversos autores escreveram sobre isso. Não existe consenso em relação à definição e abrangência da Inteligência Espiritual e enquanto uns não concordam com a denominação dessa dimensão do ser humano como sendo uma inteligência, outros não distinguem SQ de Espiritualidade e utilizam ora um ora outro termo em seus artigos, de modo indiferente.
Porém, alguns autores afirmam que tais conceitos são distintos, e é com este grupo que me identifico, sendo a norte-americana Cindy Wigglesworth quem mais admiro, por apresentar um aporte teórico-prático brilhante e uma aproximação teleológica, orientada ao crescimento. Com linguagem imparcial e pragmática, ela demonstra de modo cuidadoso e objetivo como transformar a consciência do transcendente e a dimensão espiritual do ser humano em comportamentos e ações.
Wigglesworth diferencia Espiritualidade de Inteligência Espiritual. Para ela, Espiritualidade é “a necessidade inata do ser humano se conectar a algo maior do que ele mesmo, algo que considere divino ou de nobreza excepcional” e Inteligência Espiritual, “a capacidade de se comportar com sabedoria e compaixão, mantendo paz interior e exterior, independentemente da situação”. Sua teoria de desenvolvimento – SQ21 – se fundamenta em vasta pesquisa de conhecimento nos campos da Ciência, Filosofia, Psicologia e das grandes tradições de fé, principalmente o Misticismo, sendo simultaneamente neutra e amigável a qualquer sistema de crenças, não entrando em conflito com nenhuma religião e funcionando de modo igualmente eficaz entre céticos e ateus. Por estas razões, é utilizada com sucesso para desenvolvimento de liderança no meio empresarial já há alguns anos.
Quando eu mencionar o termo SQ neste artigo será a partir desta perspectiva, que adotei pelas razões explicitadas. Importante apontar que SQ existe em nós como potencial, ou seja, não nascemos espiritualmente inteligentes. Precisamos desenvolvê-la, assim como fazemos com a inteligência emocional, ou qualquer outra de nossas linhas.
A aproximação à EQ mais amplamente utilizada no meio corporativo é a de Goleman e Boyatzis. A dupla definiu inteligência emocional como “a capacidade de gerenciar a nós mesmos e as nossas relações de modo efetivo” (Goleman, 1995) e para eles, uma competência de EQ é a “habilidade de reconhecer, compreender e utilizar informações emocionais sobre si mesmo que levem a ou originem, desempenho mais eficaz e superior” (Boyatzis, 2009).
Goleman e Boyatzis criaram um modelo conceitual composto de 18 competências, distribuídas em 4 quadrantes que dizem respeito à autoconsciência, consciência social, autocontrole e gestão de relacionamento. Atualmente o modelo conta com 12 competências, sendo as 3 mais importantes o autoconhecimento emocional, a empatia e o autocontrole emocional, sem as quais se torna difícil alcançar desenvolvimento satisfatório de inteligência emocional. Por isso são chamadas metacompetências e a partir delas, as demais entram em desenvolvimento.
Mas seria mesmo possível identificar habilidades de Inteligência Espiritual? Inspirada no modelo Goleman-Boyatzis, Wigglesworth partiu da hipótese de que as habilidades de SQ – caso pudessem ser descritas – refletiriam um passo além da EQ.
Para começar, buscou identificar líderes inspiradores, figuras admiráveis que demonstrassem ser espiritualmente inteligentes, como Jesus, Buda, Dalai Lama, Gandhi, Madre Teresa, Mandela, para citar alguns e em seguida analisou seus comportamentos e tomadas de decisão. Percebeu que não só tinham atitudes exemplares, como expressavam Amor em todas as suas ações e decisões. Como a intenção primeira era entender como nos tornamos pessoas melhores, listou suas características (humildade, coragem, perdão, integridade, amor, serviço) e chegou a um conjunto de 21 habilidades, distribuindo-as em 4 quadrantes: o primeiro relacionado à Consciência do Eu/eu, o segundo à Consciência Universal, o terceiro à Maestria do Eu/eu e o último, à Maestria Social e Presença Espiritual.
Habilidades descritas em estágios de desenvolvimento
Por ser uma abordagem orientada ao crescimento, teleológica, não bastava ter as habilidades simplesmente definidas, seria necessário descrevê-las em diferentes estágios. Assim, o modelo complexo e integral tem as habilidades descritas em 5 níveis de desenvolvimento e funciona como um mapa, um caminho profícuo que auxilia nossa jornada evolutiva como seres humanos. Chave para a imersão nos quadrantes é a compreensão da linguagem Eu/eu (Self/self), relacionada aos estágios de maturidade do ego.
Agora que compreendemos melhor as origens do SQ21 e vislumbramos sua aplicabilidade, eu mergulho na relação entre EQ e SQ, apontando o fato das 3 metacompetências de EQ serem importantes para o florescimento da SQ.
Quando iniciamos o desenvolvimento da EQ, é comum chegarmos à conclusão de que nos falta vocabulário emocional, e percebemos nosso modo reativo de agir no mundo, com a freqüência da ativação do nosso sistema límbico. Se não é possível controlar as emoções, podemos escolher controlar nossos impulsos em relação a elas. Com o tempo, não só identificamos gatilhos, como conseguimos reconhecer previamente em que situações e momentos eles seriam ativados. Assim, gerenciamos melhor nossos comportamentos, reações e relacionamentos.
Uma vez que começamos a desenvolver SQ, percebemos um aumento considerável da autoconsciência. Com a prática, gradualmente enxergamos como essas inteligências nutrem uma à outra. Neste sentido, é importante o desenvolvimento das duas simultaneamente, pois assim como mutuamente se aceleram, a estagnação em uma pode causar estagnação na outra. Ambas as linhas são necessárias e não se trata de escolher uma ao invés da outra.
Enquanto uma pessoa emocionalmente inteligente desenvolve o autocontrole e mantém um comportamento equilibrado no ambiente profissional e em seus círculos sociais, muitas vezes o que ela demonstra no mundo exterior não corresponde ao que acontece em seu mundo interior. Internamente ela identifica suas emoções e sentimentos, reconhece sua ansiedade e seus medos, entretanto vive constantemente evitando entrar em contato com tudo isso. Aqui, o papel da SQ no longo processo de transformação pessoal é essencial para a diminuição do desequilíbrio interior, dos níveis de estresse e mal estar.
Ampliando nossas capacidades
Dois pares específicos de habilidades de inteligência espiritual quando colocados em prática ampliam muito a inteligência emocional, a Consciência da própria visão de mundo (n.1/Q1) e a Consciência da visão de mundo do outro (n.7/Q2); e a Consciência do ego / Eu-Superior (n.5/Q1) e Mantendo o Eu-Superior no comando (n.13/Q3).
Com elas, somos chamados a questionar reações e convidados a mudar nossa perspectiva, interrogando pensamentos e gatilhos. Compreendemos que nossa visão de mundo não é a única, que todas são incompletas e carregam elementos de verdade, o que reduz imensamente o drama em nossas vidas e ao nosso redor. Deixamos de ser reativos quando buscamos pausa para silenciar nossas vozes internas – por vezes tão imaturas e propensas a exageros de todos os tipos (ego) – e então conseguimos escutar a parte de nós que é mais serena, que enxerga nossos medos e os acolhe, que se sente confortável em meio ao desconhecido, que busca unidade com o todo (o Eu-Superior).
Com SQ, não suprimimos emoções difíceis. Existe espaço para elas na vida de alguém espiritualmente inteligente. Nós nos tornamos capazes de senti-las e não nos condicionamos a elas. Aqui o nível de maturidade do ego faz toda diferença e a SQ nos permite viver as emoções de forma legítima, pelo tempo necessário para que cumpram suas funções. Emoções contêm informações, não nos definem (David, 2016).
Naturalmente aumentam os níveis de empatia e conexão com o outro, e com isso mantemos uma presença calma e equilibrada mesmo diante de situações de profundo sofrimento. Nossos gatilhos se dissolvem, alcançamos a compaixão, permanecemos em equanimidade. Neste ponto, sentimos o desejo de aliviar o sofrimento do outro e algo nos impulsiona a colocarmo-nos a serviço de um bem maior.
Um despertar acontece, e isso nos revela uma bela expansão da compreensão que temos de nós mesmos, do próximo e do mundo. Percebemos a importância do comprometimento com nosso crescimento espiritual e observamos nosso ego amadurecer. Não é um processo fácil, requer que priorizemos tempo para o espírito e para olhar para dentro constantemente. É necessário ter coragem para viver a vulnerabilidade de encararmos nossas sombras, para que nosso modo de ser e estar no mundo passe a ser minimamente parecido com alguns dos líderes inspiradores que tanto admiramos.
E então, o que você acha de incluir algumas habilidades de inteligência espiritual em sua prática diária de desenvolvimento, para ampliar sua inteligência emocional?
Este texto foi escrito especialmente para a Edição n.95 da Revista Coaching Brasil
Palavras-chave: inteligência espiritual, SQ21, cindy wigglesworth, inteligência emocional, espiritualidade, transformação, maturidade do ego
Referências Bibliográficas:
Gardner, H. “Frames of Mind: the Theory of Multiple Intelligences”. New York: Basic Books, 1983.
Goleman, D. “Inteligência Emocional”. Rio de Janeiro: Objetiva,1995.
David, S. “Emotional Agility”. New York: Avery, 2016
Wigglesworth, C. “SQ21: The Twenty-One Skills of Spiritual Intelligence”. New York: SelectBooks, 2012.
Wilber, K. “Integral Psychology: Consciousness, Spirit, Psychology, Therapy”. Boston: Shambhala, 2000.